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A Rapariga na Aldeia

A Rapariga na Aldeia

"Voar faz-me bem"

Ao fim de dois anos do curso de engenharia, o David percebeu que queria ser piloto. O sonho de construir uma ponte ficou suspenso e deu lugar a voos mais altos, literalmente. Hoje em dia faz pontes aéreas. É semelhante 😁. Foi o primeiro da família a formar-se nesta área. Ultrapassou essa barreira e muitas outras. Sente-se profissionalmente feliz como piloto na TAP Express. Adora voar. Encontra paz assim que o avião levanta as rodas do chão. Falta-lhe conhecer Rússia e África do Sul. Se os seus três filhos quiserem ser pilotos ... o melhor é começar a fazer um mealheirozito a partir de ... agora!!  Conversámos sobre o que acontece a bordo dos aviões, perguntei de tudo um pouco. Esqueçam a infeliz teoria de que os pilotos ligam o piloto automático e metem-se a ler o jornal A Bola. Há mínimos! A conduta interna manda ler os manuais dos aviões e não outro tipo de literatura. 🤦‍♀️

26c2730e-2c70-47ec-aa34-839022a5257d.jpgDavid Inácio - piloto. 

 

Consegues recordar a sensação do teu primeiro voo? 

Lembro-me pois, tive imensa vergonha. Não encarei ninguém nesse voo. Quando as pessoas entram no avião os pilotos já estão no cockpit, de maneira que não há muito contato. No meu primeiro voo, por um motivo qualquer, tive de vir à cabine e recordo-me que entrei e saí bem rápido! Hoje em dia não tenho essa atitude, claro, já me sinto mais seguro, essencialmente menos tímido. Se vier à cabine meto conversa, cumprimento as pessoas e brinco com as crianças.

 

Como é um dia de trabalho normal? 

 

Quando estou aqui na Ericeira, dirijo-me ao aeroporto de Lisboa devidamente fardado. Na zona de operações, faço o check in, tiro o meu processo de voo com todas as informações. Começo a estudar a meteorologia em Lisboa e a do destino. Reúno com a tripulação de cabine e com o comandante para um pequeno briefing, onde sabemos as horas de voo e, por exemplo, a turbulência prevista para que os colegas consigam organizar o serviço de refeição. Depois passo pelo raio-x e encaminho-me para o avião, cerca de 40 minutos antes do voo. 

 

Passar tantas horas dentro do cockpit não é claustrofóbico? 

Sabes, eu não tenho essa sensação. E digo-te mais, muitas questões da minha vida pessoal resolvo lá em cima. Somos dois no cockpit mas, como cada um sabe as suas funções, geralmente um voa e o outro fica encarregue das comunicações, depois troca-se, há alguns momentos de pausa. Aí penso, idealizo, resolvo e chego ao chão com certezas! Pode parecer estranho mas encontro uma enorme paz assim que o avião levanta as rodas do chão. Voar é também como uma terapia. Faz-me bem. 

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Como é que os "teus" vêm a tua profissão?

É engraçado que cada um tem a sua versão. Só o meu irmão é que tem a visão real desta vida porque é piloto e desempenha as mesmas funções que eu. Ele sabe que há dias muito violentos. A minha mulher diz que vou passear! Os meus pais, e mais a minha mãe, têm aquela preocupação constante por acharem que estou sempre em perigo. Até há bem pouco tempo, tinha de telefonar à minha mãe assim que aterrava, independentemente das horas! Os meus amigos acham que me farto de viajar, de conhecer sítios e isso tudo .... 

 

Pois, agora vou colocar-me no lugar dos amigos ... é assim mesmo esse regabofe todo?

Não, o regabofe que falas e que muitos imaginam só existe se quisermos e não me parece que aconteça mais nesta área. Repara, se a pessoa for mal intencionada consegue fazer tudo mesmo tendo uma profissão das nove às seis. Aqui e principalmente no longo curso, a tripulação passa muitas horas juntas. Imagina um grupo de colegas de trabalho um mês num sítio paradisíaco em que há folgas e se fazem passeios. Claro que há pessoas que se apaixonam e acabam por se divorciar mas não creio que nesta profissão a taxa de divórcios seja mais elevada. Ou é?! 

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O que é que te desafia?

Posso dar-te um exemplo, há um aeroporto em Londres, o London City, onde é extremamente complexo operar. O aeroporto é minúsculo, mesmo no centro da cidade. É necessário uma qualificação específica para operar nesse aeroporto. Isto para mim é desafiante. Adoro estes desafios. Aliás, vou lá amanhã. 

 

Quais são os maiores inconvenientes desta profissão? 

Para mim, estar afastado da família em datas especiais é sempre duro. Mas também é em datas festivas, por exemplo Natal, que há um maior pico de passageiros, quando trabalhamos mais. Quando eu trabalhava no chamado "longo curso" sofria mais com a irregularidade de horários. Quando se é solteiro e não se tem filhos a gestão da vida familiar é mais fácil. O caso muda de figura quando se tem filhos e, por exemplo, temos de passar um mês na Nigéria ou na Tailândia. Chegou a acontecer-me quando trabalhava noutra empresa. Aí sim, é difícil gerir as emoções. As saudades falam alto. Agora que estou na TAP e não faço longo curso tenho outro tipo de vida. Eu costumo dizer que vivo um sonho. Adoro trabalhar neste registo. A minha qualidade de vida quadruplicou! Hoje em dia tenho uma escala mensal o que me permite organizar e planear a minha agenda familiar. 

 

Qual a pior situação que já te aconteceu a bordo? 

Uma das situações mais terríveis que pode haver num avião é fogo a bordo. Numa viagem de Aruba para Amesterdão sentimos cheiro a queimado dentro do cockpit. Estávamos a meio do Atlântico, a duas horas de um aeroporto e a três de outro, portanto num local onde não devia acontecer nada. A questão foi que não tínhamos mensagem/indicação nenhuma, não estávamos a conseguir perceber de onde vinha. O cheio a queimado passou para a cabine. Era preciso identificar de onde vinha o cheiro. Ao fim de três minutos ( e três minutos em aviação é uma eternidade) surgiu-nos a mensagem nos nossos registos. Afinal tinha sido um dos "motorzinhos" que faz a circulação do ar dentro do avião que tinha queimado. Não foi uma coisa grave mas como a mensagem surgiu tardiamente ficámos preocupados. Ainda no mesmo voo, quando já estávamos a preparar a aterragem, o comandante pediu-me para pôr o trem em baixo. Não desceu! Ao fim de não sei quantas tentativas lá foi possível fazê-lo descer. Foram assim dois calafrios no mesmo voo que me fizeram nunca mais esquecer aquele dia. 

 

A turbulência faz um avião cair? 

Não. Existem três níveis de turbulência: ligeira, moderada e severa. Nunca apanhei a "severa". Mas, numa situação destas, há obrigatoriamente feridos a bordo, isto porque, se não levarmos o cinto colocado, o teto do avião pode bater-nos na cabeça e magoar-nos. O que faz cair um avião, na grande maioria dos casos, é falha humana. Há efetivamente falhas técnicas e/ou mecânicas mas uma má decisão humana pode comprometer tudo. Mas, atenção, continua a ser o meio de transporte mais seguro do mundo. 

 

Qual a situação mais caricata que viveste a bordo?

Num voo Nigéria-Arábia Saudita, tive passageiros que faziam as necessidades nos corredores do avião. Eram pessoas de baixa cultura e que nunca tinham viajado. Os meus colegas de cabine trabalhavam com máscaras devido ao mau cheiro. 

 

Os drones deixaram de ser uma brincadeira e passaram a ser uma ameaça à segurança coletiva. Como vês esta questão?

Na minha opinião, os drones precisam de legislação. As pessoas acham imensa graça conseguirem um grande plano ou um ângulo fantástico de um avião a chegar aqui a Lisboa por exemplo mas esquecem-se que isso pode trazer danos incríveis. 

 

Conselhos que podes deixar a quem sonhe seguir a carreira de piloto? 

Durante os anos do curso é preciso muito estudo e isso obriga, inevitavelmente, a algum isolamento. É preciso disciplina, saber que é mesmo isso que se quer fazer da vida. Dedicação total. Estudo constante. Saber agarrar as oportunidades e perceber que não há espaço para a irresponsabilidade. 

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IMG_3785.jpgEntrevista realizada no Restaurante Jangada, Ericeira. 

Obrigada You And The Sea. ♥️

 

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