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A Rapariga na Aldeia

A Rapariga na Aldeia

Cera nos Ouvidos

Completa(MENTE) escrito por Sónia Vaz

 

Há dois dias fui buscar os meus filhos à escola, rotina habitual para muitos, mas raríssima para nós, pelo que estávamos os três algo elétricos com o acontecimento. Bem, todos menos um, o Duarte, que trazia (mais) um recado na caderneta.

 

Decorriam as apresentações dos projetos de inglês, e o meu filho – que literalmente nunca se cala – sempre que não entendia alguma coisa do que se estava a passar comentava com um colega (que por acaso era o teu, Cátia). Ao que parece, a professora já o tinha avisado diversas vezes e começava a ficar sem paciência. Mas a gota de água foi quando a senhora olhou para o Duarte e ele tinha uma das mãos no ouvido. Automaticamente pensou que ele estava a gozar com os colegas e a tapar os ouvidos para não ouvir o que estes diziam. Por sua vez, o Duarte estava com comichão porque tinha cera e estava a tentar tirá-la. Não entendeu portanto, o que se passou a seguir.

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Vinha muito abalado, a chorar. Claro, aquela alminha precisa de falar e não lhe foi dada a hipótese de se justificar. Ninguém, para além dele sabe se disse a verdade, é certo. Mas porque será que assumimos sempre que as crianças estão a mentir? Acredito que se não os validarmos, vão acabar por desistir de falar, de se explicar, o que a longo prazo lhes poderá trazer muitos dissabores nas suas relações interpessoais. Respondi à professora. Pedi-lhe apenas que o ouvisse, se assim o entendesse.

 

No dia seguinte, estava eu na escola, a preparar as apresentações orais de inglês com os meus alunos. Enquanto ajudava um dos grupos ouvi o som de uma bola a driblar na sala. Fui direta ao menino que estava a brincar e sem pensar, pedi-lhe que parasse imediatamente pois não podia estar a brincar com a bola na sala. Ele nem me respondeu. Olhou para mim aflito e parou logo. Mas um colega veio em sua defesa e disse-me que estavam apenas a treinar para a apresentação. Caiu-me a ficha. Agora era eu que estava a fazer o que tinha condenado na professora do meu filho. Pedi desculpas ao meu aluno. E fiquei a sentir-me tão mal.

 

Porque é que não me explicaste, perguntei-lhe? Ter-te-ia ouvido. Claro, teria sempre ralhado primeiro, porque agi por impulso e não percebi o que estava a acontecer. Mas quando me esclareceram não julguei e não parti do princípio que me estavam a mentir. Nesse momento, senti que a minha relação com esse meu aluno, passara a ser uma relação melhor e de mais confiança. Senti-me crescer. Não foi isso, que definitivamente, se passou com o meu filho, mas há aqui outra questão importante a ter em conta. O Duarte é um miúdo reativo. Enquanto eu teria preferido que o meu aluno falasse, a professora dele só queria que ele se calasse. Todos nós gostamos de coisas e pessoas diferentes, claro. Mas quer enquanto pais, quer enquanto professores, penso que uma coisa tem de estar muito bem definida dentro de nós: nós é que somos os adultos daquela relação, e por isso, temos a responsabilidade acrescida de não fazermos birras e agirmos como tal.

 

Como podemos querer que os nossos filhos e alunos nos ouçam se não é esse o exemplo que lhes damos? Quantas vezes os ouvimos? Mas ouvimos mesmo? Sem pressa para dar a matéria? Sem pressa para fazer o jantar? Quantas vezes, ouvimos realmente alguém? Se estamos tomar café com uma pessoa e a trocar mensagens com outra? Se estamos a falar ao telefone e a pôr a mesa ao mesmo tempo? Ouvir alguém a sério é talvez uma das coisas mais difíceis de se fazer. Principalmente para uma faladora, como eu. Mas treina-se. Com consciência, com amor, com empatia.

 

Naquele dia, não era só o Duarte que tinha cera nos ouvidos. Temos todos, sempre, demais.

 

P.S. 1 – Por favor, não usem cotonetes de plástico!

P.S. 2 – Hoje, na feira do livro, comprei um livro sobre empatia – parece que esta sim, ajuda na limpeza dos ouvidos!

 

Sónia Vaz

Professora de Inglês (1º Ciclo)